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15 de out. de 2012

Referências reais usadas na série Game of Thrones

Os hábitos, as guerras e as figuras reais que serviram de referência para o best-seller As Crônicas de Gelo e Fogo. A Idade das Trevas que inspira a trama, e faz sucesso também na TV, se revela uma época mais iluminada (e muito mais sangrenta) do que se costuma supor.

O livro de ficção mais vendido hoje no Brasil tem 592 páginas e se chama A Guerra dos Tronos. Na 2a posição, vem A Fúria dos Reis, com 656. Publicados nos Estados Unidos em 1996 e 1999, foram escritos pelo americano George R. R. Martin e dão início ao ciclo As Crônicas de Gelo e Fogo, com 7 partes programadas. Considerado um sucessor mais apimentado e violento de O Senhor dos Anéis, um clássico da fantasia medieval, o fenômeno editorial foi parar na TV. O primeiro volume da saga inspirou a série Game of Thrones, do canal HBO. Apesar do componente fantasioso, que inclui ovos de dragão, tanto os livros como a série se reportam à realidade - o autor já se declarou fã de livros de história e coleciona cavaleiros medievais em miniatura. É na bruta e sangrenta rotina da Idade Média que o autor se inspira. Conhecer o período revela muito sobre a trama. E a ficção de R. R. Martin, por mais que seja uma fantasia, ajuda a entender aspectos da Idade das Trevas.

  • Entre muralhas - e fora delas
Nos anos 1980, numa viagem à Inglaterra, George R. R. Martin se impressionou com os restos da Muralha de Adriano, concluída pelos romanos no ano de 126 para separar o mundo civilizado dos bárbaros do norte, que viviam na atual Escócia. Essa tensão fronteiriça entre Roma e os outros povos marca a transição para a Idade Média: a Idade Antiga termina em 476, quando é expulso da cidade Rômulo Augusto, o último imperador romano, substituído pelo rei bárbaro Odoacro. Naquele momento, Roma já era apenas uma sombra de seu passado. Fazia cerca de dois séculos que a falta de controle sobre as províncias era um problema crescente, e os vizinhos ameaçavam o domínio do império, que, na prática, já caíra várias vezes. Desamparados pelo poder central e acossados por ondas de guerras e saques, os camponeses preferiam estabelecer vínculos com os grandes donos de terra das redondezas, vendendo seu trabalho em troca de proteção. A Muralha de Adriano foi a inspiração para uma das presenças mais marcantes da trama de As Crônicas de Gelo e Fogo: o paredão de gelo no norte do continente Westeros, que separa os habitantes dos Sete Reinos do desconhecido (leia mais nas págs. 32 e 33). É também uma bela metáfora para a situação geográfica do homem medieval, associado no nosso imaginário a castelos fortificados. As pessoas tinham medo de mares e florestas, territórios povoados por monstros e seres malignos. O mundo na Idade Média, para a maioria, não ia além de alguns quilômetros quadrados de casa, entre os muros do castelo ou nas redondezas. O imobilismo, porém, não era total, como se costuma imaginar. "Algumas poucas vezes na vida, as pessoas se deslocavam por distâncias mais longas", afirma a historiadora Martha Carlin, professora da Universidade de Wisconsin. "Isso aconteceu principalmente em períodos de Cruzadas ou durante visitas a feiras, que se tornaram cada vez mais comuns a partir do século 10." Na ficção de Martin, as viagens quase invariavelmente têm finalidades guerreiras.

  • Tempos de pancadaria
Game of Thrones é um banho de sangue na TV. Sua violência, porém, não tem nada de gratuita. A Idade Média foi uma das épocas mais carniceiras da História. Estudos recentes mostram que as mortes por esmagamento da face, por exemplo, eram tão comuns quanto as provocadas por lâminas. Uma demonstração nítida do grau de brutalidade no cotidiano da população. No medievo, o europeu não costumava passar dos 35 anos. (Hoje, no Afeganistão, a pior estimativa do mundo, a população vive cerca de 45.) Os senhores feudais impunham sua vontade entre os camponeses, judeus e hereges eram queimados pela Inquisição, cristãos e muçulmanos se matavam em nome da fé. O pau comia solto, e a saga se aproxima da faceta "Idade Média má", expressão do historiador Jacques Le Goff. "A violência fazia parte da vida das famílias de todas as classes", diz Mark Bailey, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra. Durante a Baixa Idade Média (entre os séculos 11 e 15), as contendas por terra eram intensas. Associada à perseguição religiosa, essa instabilidade produzia muitas guerras. "Os camponeses eram obrigados a lutar para defender seus senhores. Mal equipados, eles iam para a linha de frente", diz o historiador Patrick Geary, da Universidade da Califórnia. Um episódio sangrento do fim da Idade Média influenciou diretamente a criação de dois núcleos de protagonistas de As Crônicas de Gelo e Fogo. Em 1455, estourou na Inglaterra a Guerra das Rosas - por 30 anos, duas das principais famílias do país duelaram pelo trono. A referência é explícita: no mundo real, lutaram as casas de York (simbolizada pela rosa branca) e Lancaster (a vermelha). Na ficção, são nomes semelhantes: Stark e Lannister. "O autor cita um caso conhecido, mas os conflitos entre famílias poderosas se tornaram muito comuns quando o poder começou a se concentrar em reinos", afirma Bailey. Nesse contexto de extrema violência, destaca-se uma figura que seria o grande símbolo da Idade Média: a do cavaleiro.

  • Ética cavalheiresca
Um tipo de cavalo de batalha, o destrier, se populariza na Europa na Idade Média. Vindo provavelmente da Ásia no século 7, o animal deu novo protagonismo aos animais nas guerras por seu tamanho e sua resistência. "Além disso, o aperfeiçoamento da sela, que já era conhecida pelos romanos, e a adoção do estribo permitiram que o cavaleiro tivesse mais controle sobre a montaria. A união entre homem e cavalo se tornou invencível", diz Tim Ayers, historiador da Universidade de York. As selas reforçadas passaram a permitir que o guerreiro andasse a cavalo com mais peso sem perder o equilíbrio. Tornou-se possível montar usando armaduras pesadas. Essa imagem imponente passou a ser associada a heroísmo e nobreza. Os cavaleiros, porém, sempre estiveram a serviço de alguém. Não necessariamente de causas nobres, mas da elite feudal. A Guerra dos Tronos mostra muitos deles e ao menos um torneio semelhante aos que entretinham a população, quando os combatentes exibiam suas habilidades. Na Europa, com o cavaleiro, surgem rituais de iniciação, regras de conduta e a sua cara-metade, a dama, sinônimo de mulher bela e virtuosa. Sobram estereótipos como esse, reproduzidos na composição dos personagens da saga. A maioria desses elementos traz ideais inventados pelos romances de cavalaria, um gênero inspirado na mitologia do homem e seu animal, que culminaria, em 1605, em Dom Quixote, sátira de Miguel de Cervantes ao estilo.

  • Vida de templário
Entre os núcleos de personagens da trama, os Patrulheiros do Norte são responsáveis por guardar a muralha de gelo. Vestem preto, obedecem a uma hierarquia rígida e juram fidelidade vitalícia à causa. O modelo é inspirado nas ordens militares e religiosas medievais, como a dos Templários. Fundada em 1118, chamava-se Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. Seus membros eram monges-guerreiros vestidos com mantos brancos e uma cruz vermelha no peito. Eles foram forçados a encerrar suas atividades em 1312 pelo papa Clemente 5o, sentindo-se ameaçado pela riqueza e pelo poder acumulado pela ordem. Mas as organizações desse tipo se multiplicaram. "Os costumes dos monges eram seguidos à risca. Os cavaleiros cristãos faziam voto de castidade, por exemplo. Trocavam a dedicação à cultura e aos necessitados por ações militares em defesa dos fiéis", afirma Paul E. Szarmach, da Academia Medieval da América.

  • Mulheres e crianças
Entre os fãs ilustres da série estaria a presidente Dilma Rousseff. Na Idade Média, claro, as mulheres jamais conheceram tanto poder, mas a ficção permite alguma identificação com figuras como lady Catelyn Stark, uma matriarca influente. Na vida real, mudanças iniciadas no medievo ajudaram a definir o papel da mulher na sociedade atual. Surgiam a repressão à poligamia - deixava de existir no norte da Europa o macho com um time de esposas - e o hábito de a mulher dizer "sim" no instante do casamento (a escolha era da família, mas o consentimento era simbólico). Para Le Goff, houve avanço real na condição das mulheres, que conseguiram ocupar um espaço que não tinham na Antiguidade. As da nobreza, que não podiam sequer sair sozinhas nos jardins dos castelos, tinham influência dentro deles. As mais pobres driblavam proibições e se tornavam curandeiras, benzedeiras e parteiras. Aliás, ser criança naquele período era muito diferente. A labuta começava por volta dos 10 anos. No início da saga, Eddard Stark leva Bran, seu filho de 7 anos, para ver a decapitação de um desertor. Queria que o herdeiro se acostumasse à brutalidade dos maiores. Uma cena que, fatalmente, aconteceu na vida real.

  • Apontando para o futuro
Numa passagem emblemática da trama, o príncipe Joffrey reclama do rei Robert à mãe, a rainha Cersei. Ele critica a atenção paterna dada ao chefe dos Starks, Eddard. Acha-os primitivos. Para o jovem, quando ele subir ao trono e controlar os Sete Reinos, a solução será aumentar os impostos para o clã e forçá-lo a fornecer homens para as tropas reais. A cena pode servir de síntese da transição da época medieval para os tempos do moderno Estado nacional: um rei fortalecido diante das soberanias pulverizadas dos senhores feudais, amparado por um Exército regular sob seu comando. Tal processo de formação de nações foi bastante tumultuado - com algumas exceções, como Carlos Magno (747-814) e Luís 9º (1214-1270), durante a Idade Média os reis tiveram pouco poder para além dos limites de suas propriedades. Perto do fim do período, a situação foi se modificando. Na França, por exemplo, os castelos fortificados de nobres muito poderosos eram destruídos a mando do rei. A primeira nação a conseguir completar o itinerário de concentração de poder na figura real foi Portugal - que, assim, saiu na frente nas grandes navegações. Não fosse isso, este texto talvez estivesse em outra língua. Não é que a solução do príncipe Joffrey estava certa?

Fonte: Aventuras na História
Livros:
Uma Longa Idade Média, Jacques Le Goff, Civilização Brasileira, 2008.
Um resumo das pesquisas de Goff sobre crenças, hábitos e sonhos dos homens medievais.
As Crônicas de Gelo e Fogo - A Guerra dos Tronos, George R. R. Martin, Leya, 2010.
Primeiro volume da saga de 7 livros de fantasia medieval. Foi adaptado para a TV pela HBO.

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